segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Práticas travestis lidam com identidades sociais de forma estratégica


Por Maria Teresa Manfredo
23/09/2011
Práticas travestis entre adolescentes, nos dias de hoje, têm sido construídas em moldes diferentes da geração anterior. Por meio de montagens e desmontagens do que se compreende socialmente como masculino e feminino, esses jovens têm buscado manipular identidades sociais de forma estratégica. Além disso, esses comportamentos seriam um misto de resistência e inserção em códigos já sedimentados de sexualidade e gênero. É o que afirma Tiago Duque no livro recém-lançado Montagens e Desmontagens: desejo, estigma e vergonha entre travestis adolescentes.

Entendendo por montagem e a desmontagem não só o fato de se vestir com roupa de mulher mas também o uso de hormônios femininos e técnicas de modificação do próprio corpo, Duque reforça que o comportamento desses jovens diz muito sobre o que rege a vida social, valores e relações de poder. Por trás do temor e da recusa da travestilidade está a busca da manutenção e reprodução de uma forma idealizada e predominante de sexualidade. Assim, a estratégia de saber, ou procurar saber, onde se pode ir montada ou desmontada (sem, contudo, perder a identidade travesti e, muitas vezes, ganhando outras - como a de gay e a de dragqueen), mostra o potencial de resistência e, ao mesmo tempo, controle, que o desejo aciona nesses sujeitos, transformando-os de acordo com as circunstâncias.

Em meio às reações repressoras e preconceituosas, os adolescentes pesquisados desenvolveram formas diversas de enfrentar as rejeições àqueles que buscam uma vivência da sexualidade e uma construção dos corpos em contradição às normas socialmente aceitas e constantemente impostas. Tratam-se de maneiras de vivenciar identidades sexuais de forma fluída, transitória e reversível.

Isso indicaria uma mudança nos referenciais e repertórios mais restritos de gerações travestis anteriores. Duque explica que tal fato ocorre porque, dentre outras coisas, o aprendizado de “como se tornar travesti” e as possibilidades de se concretizar a montagem têm ocupado, ainda que timidamente, um número maior de espaços sociais - como serviços públicos de saúde, o movimento social Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis (LGBT) ou mesmo boates de público Gay, Lésbicas e Simpatizantes (GLS). Esses espaços agregam novas características, novas referências e valores às experiências de travestilidade que, em contrapartida, tendem a transformá-los também. Dentre essas novidades no ato de ser travesti destaca-se a flexibilização do ideal de “estar como mulher 24 horas por dia”, o qual tem perdido força entre os mais jovens. Seriam maneiras de driblar as imposições das normas coercitivas e de realizar desejos não reconhecidos e não aceitos pela sociedade.

“O cenário das sexualidades atual é amplo, diverso e de difícil mapeamento”, expõe Duque, pois as fronteiras do que chama de culturais sexuais estão em constante modificação e interpenetração. As mudanças na esfera da sexualidade se associariam ao que chama de novas tecnologias corporais e a uma ampliação do debate de gênero e sexualidade para além das heterossexualidades. Além disso, as atuais possibilidades de construção do feminino (com cirurgias e tratamentos estéticos) teriam trazido novas implicações identitárias para as travestis e tornado os corpos mais plásticos à construção e desconstrução do que se deseja. Contudo, entre as travestis, estas novidades não se dariam de forma desconectada de padrões e práticas já legitimadas, o que contribui para uma reflexão sobre o que é ser travesti nos dias atuais.

Nesse sentido, a manipulação do estigma de forma estratégica ou tática parece ser uma característica marcante da geração que buscaria maior aceitabilidade e respeito, o que, talvez, substituiria, ao menos em parte, as estratégias cotidianas de escândalo que marcaram as gerações anteriores. Naquelas, “muitas travestis eram destituídas até mesmo da aspiração ao respeito social”, nas palavras de Duque. Assim, ele tenta compreender como esses adolescentes têm manipulado a travestilidade – o “virar travesti” – para terem acesso não somente a lugares públicos e privados, mas às relações afetivo-sexuais que desejam.

O pesquisador destaca que uma característica que revela certa continuidade no ser travesti ao longo dos últimos anos: o fato dessas jovens, quando montadas, buscarem uma condição de feminilidade que as faça “passar por mulher”, tentando legitimar uma feminilidade vista como “natural”, reproduzindo, assim, normas e padrões de gênero já reconhecidos e classificados hierarquicamente em seu meio. “O ideal de beleza travesti segue o padrão hegemônico disseminado pela mídia, sendo, portanto, branco, rico e sexualizado.”, afirma.

Sexualidade um fenômeno biológico e natural?

Atualmente, distintas perspectivas sociológicas convergem no sentido de compreender a sexualidade como histórica e culturalmente variável, além de ser uma das formas mais poderosas de diferenciação social e vetor de maneiras diversas de desigualdade. Portanto, para a sociologia, a sexualidade, para mais do que biológica e natural, é uma construção social e histórica de poder que procura ordenar o corpo por meio de práticas e saberes sociais a ele vinculadas.

Tendo isso como premissa, o estudo de Duque defende que a distinção homossexual/heterossexual serviu de base para a classificação, controle e até discriminação de sujeitos contemporâneos. Além disso, segundo o estudioso, mais do que numa identidade travesti universal, há uma constante construção e reconstrução desses sujeitos socialmente estigmatizados. Haveria multiplicidades das experiências travestis e elas revelam as ligações entre o desejo, a vergonha e o estigma. Esses sentimentos seriam relacionados com uma lógica de normalização social, fundamentada na heterossexualidade como valor central em nossa cultura.

O desejo que de alguma forma contraria com a sexualidade tida como padrão causa a vergonha, e até a dor de não atender às exigências no que toca à escolha de parceiros afetivos e sexuais. Se gostar de alguém do mesmo sexo é visto socialmente como algo vergonhoso, ainda mais punido é o desejo de se apresentar e viver em um gênero distinto do prescrito pelo sexo biológico.

Originalmente criado como dissertação de mestrado em sociologia na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), o livro de Duque partiu de pesquisa etnográfica junto a adolescentes de Campinas (SP). 

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