segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Psychopathia Sexualis - revistada

Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental - Psychopathia Sexualis
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental
Print version ISSN 1415-4714
Rev. latinoam. psicopatol. fundam. vol.12 no.2 São Paulo June 2009
doi: 10.1590/S1415-47142009000200012
CLÁSSICOS DA PSICOPATOLOGIA
ENSAIO



Psychopathia Sexualis





R. Krafft-Ebing





Capítulo III - Neuropsicopatologia Geral

I. Afeto sexual por pessoas do outro sexo com manifestação perversa do instinto*
A. Relações entre a crueldade ativa, a violência e a volúpia - sadismo1

É conhecido e frequentemente observado que volúpia e crueldade costumam se associar uma à outra. Escritores de todas as escolas já assinalaram esse fenômeno.2Até no estado fisiológico é comum ver indivíduos sexualmente muito excitáveis morderem ou arranharem seu parceiro durante o coito.3

Autores anteriores já chamaram a atenção para a conexão entre volúpia e crueldade.

Blumröder (Ueber Irresein, Leipzig, 1836, p. 51) hominem vidit quem compluria vulnera in musculo pectorali habuit, quæ femina valde libidinosa in summa voluptate mordendo effecit.

No ensaio "Ueber Lust und Schmerz" (Friedreichs Magazin für Seelenkunde, 1830, II, 5), esse autor chama particularmente a atenção para a correlação psicológica entre volúpia e sede de sangue. Ele lembra, a esse respeito, a lenda índia de Siwa e Durga (Morte e Volúpia), os sacrifícios de homens com mistérios voluptuosos e os desejos sexuais da puberdade, associados a um pendor voluptuoso ao suicídio, à flagelação, aos beliscões, às feridas infligidas às partes genitais, em razão do desejo vago e obscuro de satisfazer a necessidade sexual.

Lombroso (Verzeni e Agnoletti, Roma, 1874) também cita muitos exemplos de tendência ao assassinato durante a sobre-excitação produzida pela volúpia.

Por outro lado, com certa frequência, a excitação do desejo de assassinato acarreta a sensação de volúpia. Lombroso lembra o fato, citado por Mantegazza, de que, nos horrores de um saque, os soldados costumam sentir uma volúpia bestial.4

Esses são exemplos de transição para casos manifestamente patológicos.

Também são muito instrutivos os exemplos dos Césares degenerados (Nero, Tibério), que se regozijavam mandando degolar diante deles jovens e virgens, assim como o caso desse monstro, o marechal Gilles de Rays (Jacob, Curiosités de l'Histoire de France, Paris, 1858), que foi executado em 1440 por causa dos estupros e assassinatos que cometeu durante oito anos em mais de oitocentas crianças. Ele confessou que a leitura de Suetone e das descrições das orgias de Tibério, de Caracalla, lhe deu a ideia de atrair crianças em seu castelo, de maculá-las pela tortura para, em seguida, assassiná-las. Esse monstro garantiu ter sentido uma felicidade indizível ao cometer esses atos. Ele tinha dois cúmplices. Os cadáveres das infelizes vítimas foram queimados e apenas algumas cabeças de crianças excepcionalmente belas foram conservadas como recordação.

Quando se quer explicar a conexão entre volúpia e crueldade, é preciso remontar a casos, ainda quase fisiológicos, em que, no momento da volúpia suprema, indivíduos, por outro lado normais, embora muito excitáveis, cometem atos como morder ou arranhar, os quais costumam ser inspirados apenas pela cólera. Além disso, cabe lembrar que amor e cólera são não apenas as duas paixões mais fortes, como também as duas únicas formas possíveis da paixão forte (estênica). Ambas buscam seu objeto, querem dele se apossar e manifestam-se por uma ação física sobre ele; ambas deixam a esfera psicomotora na maior agitação e, por meio dessa agitação, alcançam a sua manifestação normal.

Este ponto de vista permite entender que a volúpia leva a atos que, em outros casos, parecem com os inspirados pela cólera.5

Ambas correspondem a um estado de exaltação e constituem uma poderosa excitação de toda a esfera psicomotora. Disto resulta um desejo de reagir por todos os meios possíveis e com a maior intensidade contra o objeto que provoca a excitação. Assim como a exaltação maníaca descamba com muita facilidade para o estado de mania de destruição furiosa, a exaltação da paixão sexual produz, às vezes, o violento desejo de descarregar a excitação geral por meio de atos insensatos que aparentam hostilidade. Tais atos representam, por assim dizer, movimentos psíquicos e acessórios; não se trata de uma simples excitação inconsciente da inervação muscular (que também se manifesta, por vezes, na forma de convulsões cegas), mas de uma verdadeira hipérbole da vontade de produzir um poderoso efeito no indivíduo que causou nossa excitação. Ora, o meio mais eficiente para tanto consiste em causar uma sensação de dor neste indivíduo. Partindo desse caso em que, no auge da paixão voluptuosa, um indivíduo procura causar uma dor no objeto amado, chega-se a casos em que existem maus tratamentos sérios, feridas e até mesmo assassinato da vítima.6

Nesses casos, o pendor para a crueldade, que pode associar-se à paixão voluptuosa, aumenta desmedidamente num indivíduo psicopata, ao passo que, por outro lado, a distorção dos sentimentos morais faz com que, normalmente, não haja entraves ou que estes sejam fracos demais para atuar.

Esses monstruosos atos sádicos, que ocorrem mais frequentemente nos homens do que nas mulheres, têm uma outra causa poderosa, que se deve às condições fisiológicas.

Na relação entre os sexos, o papel ativo e até mesmo agressivo cabe ao homem, enquanto a mulher se limita a um papel passivo e defensivo.7

Há um encanto particular, para o homem, no ato de conquistar uma mulher, de vencê-la; e, na Ars amandi, a decência da mulher, que permanece na defensiva até o momento em que cede, tem muita importância psicológica. Em condições normais, o homem depara-se com uma resistência que tem de vencer, e é para essa luta que a natureza lhe deu um caráter agressivo. Entretanto, em condições patológicas, esse caráter agressivo pode exceder todas as medidas e degenerar numa tendência para subjugar completamente o objeto de seus desejos até o aniquilamento ou até mesmo a morte dele.8

Se esses dois elementos constituintes se encontram, se o desejo acentuado e anormal de uma reação violenta contra o objeto amado une-se a uma necessidade exagerada de subjugar a mulher, então as explosões mais violentas do sadismo ocorrem.

Portanto, o sadismo não passa de um exagero patológico de certos fenômenos acessórios da vita sexualis que podem ocorrer em circunstâncias normais, sobretudo no macho. Naturalmente, não é absolutamente necessário, e essa não é a regra, que o sádico tenha consciência desses elementos do seu pendor. O que ele sente, é tão somente o desejo de cometer atos violentos e cruéis em pessoas do outro sexo e uma sensação de volúpia pelo simples fato de se representar esses atos de crueldade. Disto resulta um impulso poderoso para executar os atos desejados. Como os verdadeiros motivos desse pendor são desconhecidos de quem age, os atos sádicos estão imbuídos das características dos atos impulsivos.

Quando volúpia e crueldade se associam, não somente a paixão voluptuosa desperta um pendor para a crueldade, como o contrário também pode ocorrer: a ideia e, sobretudo, a visão de atos cruéis agem como um estimulante sexual e, nesse sentido, são usadas por indivíduos perversos.9

É empiricamente impossível estabelecer uma distinção entre os casos de sadismo congênito e adquirido. Muitos indivíduos originalmente tarados envidam, por muito tempo, todos os esforços possíveis para resistir às suas inclinações perversas. Se a potência sexual ainda existe, eles têm, de início, uma vita sexualis normal, geralmente graças à evocação de imagens de natureza perversa. Apenas mais tarde, depois de terem vencido sucessivamente todas as contrarrazões éticas e estéticas e depois de terem constatado, em várias oportunidades, que o ato normal não lhes fornece satisfação completa, é que o pendor mórbido emerge e se manifesta externamente. Uma disposição perversa e ab origine traduz-se, então, tardiamente, em atos. É isto que costuma produzir a aparência de uma perversão adquirida e enganar quanto ao verdadeiro caráter congênito do mal. A priori, entretanto, pode-se supor que este estado psicopático existe sempre ab origine. Vejamos a seguir as razões em prol dessa hipótese.

Os atos sadistas diferem em função do seu grau de monstruosidade, da preponderância do pendor perverso sobre o indivíduo acometido por eles ou, então, dos elementos de resistência que ainda existem, elementos que, entretanto, são raramente enfraquecidos por distorções éticas originais, pela degeneração hereditária ou pela loucura moral.

Assim nasce uma longa série de formas que começam pelos crimes mais graves e acabam por atos pueris que não têm outro intuito a não ser oferecer uma satisfação simbólica à necessidade perversa do sadista.

Pode-se ainda classificar os atos sádicos segundo seu gênero. É então preciso distinguir se ocorrem após a consumação do coito em que a libido nimia não foi satisfeita, ou se, em caso de enfraquecimento da potência genésica, servem de preparativos para estimulá-la, ou se, finalmente, em caso de ausência total da potência genésica, os atos sádicos vêm substituir o coito tornado impossível e provocar a ejaculação. Nos dois últimos casos existe, apesar da impotência, uma libido violenta ou, pelo menos, essa libido subsistia no indivíduo na época em que constatou o hábito dos atos sádicos. A hiperestesia sexual deve sempre ser considerada como a base dos pendores sádicos. A impotência devida a excessos praticados desde a primeira juventude, tão frequente nos indivíduos psiconeuropáticos de que se trata aqui, costuma ser fraqueza espinhal. Às vezes, pode existir uma espécie de impotência psíquica pela concentração do pensamento no ato perverso, ao lado do qual, então, a imagem da satisfação normal se apaga.

Independentemente da característica externa do ato, para compreendê-lo, é essencial examinar as disposições perversas da alma e o sentido do pendor do indivíduo afetado.





Richard Krafft-Ebing (1840-1902)
Médico alemão. Ocupou a cátedra de psiquiatria nas universidades de Strasbourg, Graz e, a partir de 1892, foi diretor da clínica psiquiátrica do Hospital Geral da Universidade de Viena. Autor de vasta obra psiquiátrica que inclui estudos sobre a melancolia, sobre a paralisia geral progressiva, sobre psiquiatria forense, sobre o hipnotismo, sobre a neurastenia e um Tratado sobre a Insanidade. Contudo, o trabalho que de fato o tornaria célebre é sua Psychopathia Sexualis, publicada em 1886.





* Tradução de Alain François e revisão técnica de Mário Eduardo Costa Pereira (Laboratório de Psicopatologia Fundamental - Unicamp). Realizada a partir da 8ª edição em alemão traduzida para o francês por Georges Carré, em 1895.
1. Assim chamado em função do mal-afamado marquês de Sade, cujos romances obscenos transbordam de volúpia e crueldade. Na literatura francesa, "sadismo" tornou-se palavra corrente para designar essa perversão.
2. Entre outros: Novalis, em seus Fragmenten; Goerres: Christliche Mystik, t. III, p. 400.
3. Vejam os famosos versos de Alfred de Musset à andaluza:

Qu'elle est superbe en son désordre Como é esplêndida em sua desordem
Quand elle tombe les seins nus, Quando cai, peitos nus,
Qu'on la voit béante se tordre E a vemos boquiaberta, retorcer-se
Dans un baiser de rage et mordre Num beijo raivoso e morder
En hurlant des mots inconnus! Berrando palavras desconhecidas!

4. Em meio à exaltação do combate, a imagem da exaltação da volúpia vem à mente. Vejam, em Grillparzer, a descrição que um guerreiro faz de uma batalha: "E quando toca o sinal, - quando os dois exércitos se confrontam, - peito contra peito, - que delícias dos deuses! - Por aqui, por ali - inimigos, - irmãos, - são derrubados pelo aço mortal. - Receber e dar a morte e a vida, - numa troca alternante e cambaleante, - numa selvagem ebriedade!" (Traum ein Leben, ato I).
5. Schultz (Wiener med. Wochenschrift, 1869, nº 49) relata o caso curioso de um homem de vinte e oito anos que só conseguia praticar o coito com a mulher após ter artificialmente ficado com raiva.
6. Ver Lombroso (Uomo delinquente), que cita fatos análogos em animais no cio.
7. Nos animais também costuma ser o macho quem persegue a fêmea com suas propostas amorosas. Pode-se também frequentemente notar que a fêmea foge ou finge fugir. Inicia-se, então, uma cena semelhante à que se dá entre a ave de rapina e o pássaro objeto de sua caça.
8. Atualmente, a conquista da mulher ocorre de forma civilizada, por meio de cortejo, sedução, artimanha etc. Mas a história da civilização e a antropologia nos ensinam que existiram e ainda existem povos entre os quais a força bruta, o rapto da mulher e até mesmo o hábito de torná-la inofensiva com maçadas substituem as solicitações de amor. É possível que um retorno ao atavismo contribua, com tais inclinações, para favorecer os acessos de sadismo. Nos Jahrbücher für Psychologie (II, p. 128), Schaefer (Iena) relata duas observações d'A. Payer. No primeiro caso, um estado excessivo de excitação sexual foi desencadeado pela visão de cenas de batalha, mesmo em pintura; no outro, foi a tortura cruel de pequenos animais que produziu este efeito. Schaefer acrescenta: "Em todas as espécies animais, a combatividade e a vontade de matar tanto são o atributo do macho que a existência de uma conexão entre esses pendores másculos e as inclinações puramente sexuais não pode ser questionada. Acredito, entretanto, poder garantir, apoiando-me em observações que não podem ser contestadas, que, até em indivíduos machos dotados de perfeita saúde psíquica e sexual, os primeiros sinais precursores, misteriosos e obscuros dos desejos sexuais podem surgir após a leitura de cenas emocionantes de batalha ou de caça. Um impulso inconsciente leva os jovens a buscarem uma espécie de satisfação nos jogos de guerra (luta corpo a corpo). Nesses jogos também o instinto fundamental da vida sexual chega a exprimir-se: o lutador procura ficar em contato extensivo e intensivo com o seu parceiro, com a segunda intenção, mais ou menos clara, de derrubá-lo ou vencê-lo".
9. Também ocorre que a visão acidental de sangue derramado ponha em movimento o mecanismo psíquico predisposto do sádico e desperte o pendor que se encontrava em estado latente.

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